O LAGO DOS CISNES
Minha amiga Poliana Dantas, depois de ler minha resenha sobre o Concerto para Violino e Orquestra de Tchaikovsky, me pediu para fazer uma outra sobre O Lago dos Cisnes do mesmo compositor, desejosa de que minha análise pudesse lhe auxiliar na crítica da película Cisne Negro, e cá estou eu tentando esboçar essas linhas. Não sinto que minha análise vá ser algo relevante para a historiografia musical tampouco para quem quer que seja, e nem é minha pretensão que o seja, e desde já afirmo que aqui postarei minhas sensações particulares, ocasionalmente farei comparações com a trilha sonora de Cisne Negro, comentando o uso de trechos de O Lago dos Cisnes com sua partitura original, assim com os arranjos de determinados trechos da obra pelo compositor cinematográfico Clint Mansell, e inserirei, talvez de maneira muito pouco analítica, informações históricas a respeito do balé que possa ter influenciado o que ela é hoje como partitura.
Tchaikovsky, como afirmei em minha análise sobre a obra anteriormente criticada, não é um compositor muito original. Sua orquestração muitas vezes se repete em estilo, a interferência dos instrumentos de sopro tanto como naipe principal como baixo, ou seja participações sutis de acompanhamento ou efetivas nos movimentos lentos, ou seja, tanto como naipe principal ou de baixos, a explosão da orquestra que geralmente é uma explosão que expressa um sentimento de festa, bem diferentemente das explosões das orquestras de Wagner, Bruckner e Mahler: o que o difere dos compositores mencionados no que concerne a esses momentos de maior exaltação é justamente a orquestração e o motivo pelos quais se desenvolvem: as do primeiro ressaltam momentos grotescos das ações grotescas dos personagens grotescos de suas óperas, e os outros dois expressam o sofrimento, da forma mais latente e gritante (Bruckner e Mahler são meus compositores românticos prediletos, e depois farei posts sobre suas obras); quanto à orquestração, Tchaikovsky é extremamente bem comportado e usa em abundancia todos os intervalos justos, de 3ª e de 6ª, ou seja, todos os intervalos consonantes, perfeitos e imperfeitos, tanto na série como na harmonia entre os naipes, e em cada naipe, entre cada instrumento, o que difere dos outros três, que não buscavam de todo a estranheza da harmonia dissonante, mas a utilizava para ressaltar os sentimentos (os Escolásticos – ou foram os Patrísticos? – já afirmavam que o belo só existe se em algo bonito existem detalhes feios, alcunhado por mim de “Princípio da Bela e a Fera”, e concordo com eles plenamente).
Quebrar as amarras, essa ditadura do consonantismo e do tonalismo pregada desde quanto Pitágoras descobriu as relações harmônicas numa lira grega, foi uma das grandes revoluções da música, um grande feito, mas ainda assim, é impossível ignorar o brilhantismo de séculos e séculos de música consonante e tonal, e é essa música que, feliz e infelizmente, dá lucro nesse ramo (pelo menos algo dá lucro nesse ramo!!!).
E é no passado que Tchaikovsky, assim como Chopin, tinha sua inspiração, sua maneira de conceber a música, com olhos em Mozart e Haydn, aquele sentido clássico em busca da harmonia perfeita, do equilíbrio e da claridade. Mas ao contrário dos clássicos, Tchaikovsky não procurava racionalizar demais sua obra, ele transbordava paixão, era espontâneo, as melodias lhe brotavam na mente com naturalidade. Claro, depois do mecenato de Nadedja Von Meck, quando ele encontrou espaço para se dedicar somente à música, sua inspiração era sua companheira mais íntima.
Era a época do surgimento das escolas nacionais, onde os autores iam em busca de inspiração. Buscavam-na no folclore típico de seus países. Cesar Franck, Chabrier e Fauré na França, na Espanha e na Inglaterra, a redescoberta desse seu folclore se deu no modernismo, anos depois, embora tiveram base em Debussy e os franceses; agora iremos para a música nacional russa.
Foram cinco jovens autodidatas, amadores e aventureiros, quem deram asas à música nacional russa: Mily Balakirev, César Cui, Modest Mussorgsky, Rimsky-Korsakov e Alexander Borodin. Eles trabalham sem interrupção e levaram a revolução aos meios musicais mais conservadores, voltados para a música ocidental. Se não fosse a simpatia do célebre crítico musical russo da época, Vladimir Stassov, que os batizam de Grupo dos Cinco, o grupo seria talvez ignorado na época. Essa época foi de uma vivacidade impar, eu estive lá!!!
Mas Tchaikovsky, apesar de admirar esses músicos, tinha sua estética mais voltada para o ocidental. Não que ele não tivesse amor pela música russa, ele mesmo buscou inspiração no folclore de seu país, e em o Lago dos Cisnes, podemos perceber de leve em alguns momentos essa inspiração. De qualquer maneira, ele se tornou uma espécie de porta voz da música russa no mundo, por turnês que fez na França e nos Estados Unidos, e hoje, é reconhecido na Rússia como uma autêntica alma russa, o grande músico russo. No estrangeiro, ele não é nada mais que um romântico tardio, e o interesse pelo Grupo dos Cinco, especialmente por Rimsky-Korsakov e Mussorgsky, é muito maior, pelas ousadias e inconformismo que suas obras trazem. Não deixa de ser uma coisa triste esse fato, pois, assim como no Japão, onde os japoneses vêem nesses ramos musicais e teatrais o que se exportar não a musica tradicional de seu país, seus instrumentos tão exóticos, seus bugaku, gagaku e nô, um país onde até o kabuki está se ocidentalizando cada vez mais, eles exportam música japonesa ocidentalizada, sem nenhuma referencia ao seu país. Tchaikovsky, é, assim, intitulado como a mais pura personificação da alma russa.
Mas isso não é exatamente uma crítica minha contra Tchaikovsky, apenas uma observação. Eu o admiro muito. Sinto muito prazer em ouvir suas sinfonias. E é isso que ele é, um grande sinfonista.
Os balés eram compostos geralmente por compositores menores que se dedicavam exclusivamente a isso: escrever música para balés. Tchaikovsky, ao escrever o Lago dos Cisnes, se tornou um dos primeiros sinfonistas a escrever balé.
O libreto de Vladimir Begtichev e Vasily Geltzer conta a história da princesa que é tranformada em cisne pelo cruel Mago Rothbart, e é dividido em quatro atos, que copio sem piedade da Wikipédia:
Ato I
No castelo realiza-se com toda a pompa o aniversário do príncipe Siegfried. A rainha oferece ao filho como presente uma balestra e pede-lhe que, no dia seguinte, escolha uma esposa entre as convidadas da festa. Quando os convidados saem do castelo, um grupo de cisnes-brancos passa perto do local. Enfeitiçado pela beleza das aves, o príncipe decide caçá-las.
Ato II
O lago do bosque e as suas margens pertencem ao reino do mago Rothbart, que domina a princesa Odette e todo o seu séquito sob a forma de uma ave de rapina. Rothbart transformou Odette e as suas donzelas em cisnes, e só à noite lhes permite recuperarem a aparência humana. A princesa só poderá ser libertada por um homem que ame apenas ela. Siegfried louco de paixão pela princesa das cisnes, jura que será ele a quebrar o feitiço do mago. Ato III
Na corte da Rainha aparece um nobre cavalheiro e sua filha. O principe julga reconhecer que a filha do nobre cavalheiro Odile é a sua amada Odette, mas na realidade por baixo das figuras do nobre cavalheiro e a sua filha escondem-se o mago Rothbart e a feiticeira Odile. A dança com o cisne negro decide a sorte do principe e da sua amada Odette: enfeitiçado por Odile, Siegfried proclama que escolheu Odile como sua bela futura esposa, quebrando assim o juramento feito a Odette.
Ato IV
Os cisnes brancos tentam em vão consolar a sua princesa. Mas Odette destroçada pela decisão do príncipe, aceita a sua má sorte. Nesse momento surge o príncipe Siegfried que explica a donzela como o mago Rothbart e a feiticeira Odile o enganaram. Odette perdoa o príncipe e os dois renovam os votos de amor um pelo o outro. O mago Rothbart, impotente contra esse amor, decide se vingar dos dois e então inunda as margens do lago, Odette e as suas donzelas logo se transformam em cisnes novamente e o príncipe Siegfried tomado pelo desespero se afoga nas profundas e turbulentas águas do lago dos cisnes. O príncipe não sobrevive. É a morte de amor.
Claro, a coreografia sempre muda de uma montagem a outra, embora sejam mantidos os esquemas de Pas de deux, de trois, etc; o enredo por vezes é levemente alterado. De qualquer maneira, quando ouvimos falar de balé, imediatamente nos vêm à cabeça esse O Lago dos Cisnes. De fato, esse é, e não consigo entender o motivo, o balé mais popular de todos os tempos. Existem outros muito mais maravilhosos, como o Romeu e Julieta de Prokofiev, ou O Mandarim Miraculoso de Bartók, o número de montagens dessa peça é infinitamente maior que as mensionadas, no entanto.
O filme Cisne Negro abre apropriadamente com a Abertura do Lago dos Cisnes, onde Rothbart transforma Odile em Cisne Branco numa coreografia à la Bolshoi, e termina exatamente com o encerramento do Balé, com a morte de Odile e, secundariamente, de Nina também.
A música de Clint Mansell para o filme se resume a arranjos da obra de Tchaikovsky, algumas delas tocadas de maneira diegética, como nas cenas de ensaio, tanto para piano como para piano e violino: falo da música da terceira cena do balé, um Allegro moderato divertidozinho, e do Pas de Deux entre Odile e o Principe Siegfried, em movimento Andante. Outras músicas do filme são mais discretas, tiradas de notas relativamente soltas na obra original, que não chamam muita a atenção do ouvinte, e que Clint conseguiu dinamizar mais no andamento, suprimindo um tom mágico e pondo em um tom mais tenso e misterioso, como na cena em que Nina vê seu reflexo negro num trem, logo no início do filme (é a música em que o Principe jura amor eterno à Odette).
O desenvolvimento desse ato, o dois, é muito bom, em que sentimos o clima de uma falsa esperança, de uma alegria que é só passageira, uma alegria repleta de cinismo da parte do compositor. É a música que expressa a arte de enganar o próximo: ele nos engana com a promessa da felicidade. Esse ato dois é pleno da mais cínica alegria, onde há também agilidade e dinamismo, além de divertimentos musicais, que expressa a pureza do amor do príncipe e de Odette. Já escutamos aqui, de leve, no baixo da orquestra, o jogo que permeará o terceiro ato, o de Odile.
O terceiro ato é o mais interessante: Siegfried declara seu amor por Odile, quebrando a promessa feita a Odette. A música desse ato é a mais sombria da obra, mas isso não significa que ela não seja leve. De qualquer maneira, expressa o sentimento de estarmos entrando num ambiente perigoso à nossa própria saúde. Aqui, Odile, o Cisne Negro, dá as caras, e, pelo fato de sabermos como a história acaba, é sempre um prazer ver a arte da enganação. Sem Odile, o Lago dos Cisnes seria das histórias mais insossas que já foram criadas.
Enfim, não vou prolongar esse post, já estou exausto de escrevê-lo, e, por mais que sinta que falta ainda muita coisa, muita informação, na tentativa de por essas informações poria um tanto mais de texto prolixo e entediante. Deixo que vocês escutem a peça e completem as lacunas que quiserem.
E Odette (Nina) pula do penhasco e morre de amor.